E no escuro, nas sombras da noite ela vivia. Sempre à espreita,
escutando, observando. Ela sabia de tudo o que acontecia, pois ela via tudo o
que acontecia ao redor. Sua presença era constante em todos os lugares. Ela
sempre gostou de manter distância das outras pessoas, pois não sentia a
necessidade de se apegar a ninguém. Ela via todas as virtudes e defeitos dos
seres humanos, todos os sonhos e vontades. Ela sabia das habilidades deles do
que eles eram capazes de fazer, de seus instintos animalescos.
Algumas vezes, ela queria ser como eles, mas na maioria das vezes ela
tinha medo de se aproximar e se machucar. Ela sabia que era indestrutível, que
nada poderia machucá-la, ela não podia sentir nada. Mesmo assim, ela tinha medo
de acabar descobrindo que é frágil, que pode ser quebrada e ter o coração
partido, pois o fato de ela sentir medo significava que ela estava começando a
sentir algo por eles.
Ela não sabia, ou não se lembrava, mas ela já fora humana um dia. Há
alguns séculos, ela conheceu um mago que lhe alertou sobre um grande mal que
havia dizimado a raça humana tal qual o câncer, um mal chamado amor, e para
ambos não havia uma cura.
Por mais que tivesse sido alertada, a aproximação foi inevitável.
Enquanto ela se escondia, um dos humanos percebeu sua presença em meio à
escuridão. Amedrontada, ela tentou fugir, mas ele a julgou como uma ameaça e a
capturou.
Ele não sabia o que ela era. Ela se parecia muito vagamente com uma
humana, mas tinha feições sinistras, como um tipo de monstro, embora parecesse
assustada. Ela não suportava a luz, e seu corpo inteiro sentia calafrios, por
isso ela estava toda encolhida em uma pequena cama e não ousava abrir os olhos.
Ele tentou acalmá-la, mas ao encostar a mão no braço dela, ela tremeu-se
toda e apertou ainda mais os olhos fechados.
- Por favor, não me machuque, eu não quero morrer. – disse ela ainda sem
abrir os olhos.
- Não quero te machucar, não vou matar você. Fique calma e abra os olhos
bem devagar.
Mais uma vez, ele tentou acalmá-la pousando a mão em seu cabelo, e aos
poucos ela foi abrindo os olhos.
E naquele momento ele soube que nunca faria mal àquela bela criatura.
Ela tinha o olhar inocente e encantador, como um anjo de mais rara beleza,
contrastando com a horrenda aparência de quem já sofrera muito nesta vida.
Ele soube a partir dali que precisava protegê-la a todo custo, precisava
fazê-la feliz. No fundo do seu coração ele sabia que chegaria o dia em que ele
a encontraria, que quando seus olhares se encontrassem ele saberia que valeria
a pena esperar uma vida inteira por esse momento.
Ela ficou surpresa ao perceber que, ao olhar nos olhos dele, toda a sua
existência se resumiria a este olhar. Tudo o que ela mais desejava era poder
ser humana como ele, para poder estar com ele. Ela não sabia, mas este havia se
tornado o seu maior desejo desde então. Seu pequeno dispositivo que projetava
emoções poderia ser um coração, e ela o sentiria explodir em seu peito com esse
estranho sentimento que a invadia. Ela queria fazer parte da convivência dele,
queria ser como ele e, embora a tenham avisado sobre os perigos que ela
encontraria, tudo valeria a pena se fosse para ter para sempre esse momento,
esse olhar. Ela queria ser parte dele, era tudo o que ela queria de todo o seu
coração, que ela nem tinha.
- Você não é como os outros. – ele disse. – eles são monstros que vieram
nos destruir, a nós e ao nosso mundo, mas você parece assustada, você nunca
faria mal a ninguém.
Ela balançou a cabeça, confirmando o que ele acabara de dizer.
- Muitos tentarão te machucar, achando estarem se defendendo, mas eu a
protegerei. Eu a levarei a um lugar seguro, onde ficaremos protegidos. Nós
ficaremos a salvo, eu prometo.
Ela não havia se dado conta, mas a cada vez que olhava para ele, ou
sempre que chegava perto demais dele, ela se tornava cada vez mais a humana que
ela nunca soube que sempre fora. Todos os sentimentos e emoções que ela vinha
sentindo perto dele aos poucos a transformavam sem que ela percebesse, até que
um dia, um infeliz acaso a fez perceber a humana ela já havia se tornado.
Ele deu a ela um nome, um sonho, uma razão de existir. Ele a ensinou a
amar os pequenos momentos, as pequenas coisas. Ele a ensinou a não ter medo de
enfrentar seus problemas e a continuar em frente mesmo após uma derrota, nunca deixar
que nada a ponha para baixo. Ele só não pôde ensinar a ela a se despedir de
alguém que ama, a superar uma perda na dor de uma tragédia. Ele a fez querer
ser humana como ele, mas quando enfim ela se tornou algo como ele, teve que
aprender sozinha a superar dores que ela jamais imaginou um dia sentir. Ela
viveu o melhor e o pior de ser humana. Ele, que agora ela aprendera a chamá-lo
pelo nome de David, além de fazê-la querer ser humana, também a fez ser de novo
o monstro de antes, a criatura viajante entre mundos que sempre repudiou a raça
humana.
Começou quando, depois de um tempo fugindo juntos, eles pararam para
observar uma cachoeira em um jardim encantado, a qual eles puderam sentir a
magia emanando daquele lugar. Ele segurou ambas as mãos dela e disse:
- Eu deveria te dar um nome, um nome que defina você como alguém
especial, pois para mim você é única, especial e perfeita. Senti isso desde o
primeiro momento em que meus olhos encontraram os seus.
- Mesmo eu não sendo humana?
- Eu não me importo, pois para mim você é mais humana do que a maioria
dos que eu conheci. Quero chamá-la de Alice, por sua esperteza e inocência ao
ver o mundo à sua maneira.
E ao dizer isso, ele se aproximou e a beijou apaixonadamente. Foi o
primeiro beijo de Alice, o que a transformou de vez na humana que ela havia se
tornado aos poucos no momento em que conheceu David, em um lugar que irradiava
magia.
- Eu te amo, Alice.
- Eu também te amo, David.
Uma fumaça a envolveu e o seu corpo se transformou, tornando-a uma linda
mulher de olhar e sorriso encantadores, e com feições de uma menina que
irradiava felicidade. Seu maior sonho acabara de se tornar realidade, não havia
sensação melhor do que encontrar o amor verdadeiro e poder tornar-se algo que
sempre quis desde que o conhecera é melhor do que qualquer coisa que se possa
imaginar.
Mas de repente, tudo mudou. Do nada apareceram vários homens armados
destruindo tudo o que havia de mais bonito naquele lugar. Os dois correram o
máximo que puderam para fugir de toda aquela destruição, mas aqueles homens
tinham sede de sangue, de vingança. Eles
representavam os maiores medos de Alice, aqueles dos quais os dois viviam
fugindo. Aqueles homens vieram vingar a Terra daqueles que ela fora até poucos
minutos atrás. Eles devem ter seguido o rastro que ela havia deixado até lá e a
seguiram.
- Está aqui! Tem que estar aqui! Nós vimos aquela coisa entrar neste
jardim, procurem por todos os lados!
Eles queriam aquilo que acreditavam ser um monstro, mas não percebiam
que, com tal atitude, eles se tornaram os monstros que tanto temiam.
David e Alice correram, tentando se esconder da fúria dos homens
armados, mas o medo do desconhecido fez aqueles homens atirarem para todos os
lados na esperança de atingirem um alvo que já não existia mais, atirando sem
se preocupar se atingiriam um inocente. Quando eles enfim pararam ao perceber
que não encontrariam ali o que procuravam, um deles atirou na direção de Alice
de longe, sem saber que ela era apenas uma garota indefesa, mas David impediu
que a atingissem empurrando-a para um lado.
- David, não!
Alice suplicou e chorou, mas embora eles já tivessem partido, deixaram
um rastro de desolação e desespero em um jardim que até poucos instantes era
repleto de magia e amor, restando agora apenas sofrimento e dor.
No lugar em que por pouco estivera Alice, David jazia envolto em uma
poça de sangue.
- Você me salvou duas vezes! Isso não é justo. Você me encontrou, me
acolheu, me ensinou a viver e amar. Eu preciso de você, David!
Com um pequeno gemido, David apertou os dedos de Alice e disse:
- Não, foi você quem me salvou. Eu era como eles, mas quando encontrei
você, descobri o real significado da vida e do amor.
E com um último beijo, David deu adeus a Alice, deixando-a sozinha em um
mundo repleto de perigo e destruição.
Não havia mais alegria, não havia mais motivos para ser humana e ser
como eles. Ela se tornara humana, mas seu coração inocente a fez se arrepender
do que se tornara. Ela não queria ser como eles, embora ela nunca tenha sido
como eles, ela sempre fora o que eles nunca serão, e não havia razão para viver
em um mundo a qual nunca pertencera. A única razão acabara de morrer diante de
si. Em seu coração não havia espaço para ódio ou vingança. Isso David nunca a
ensinara, mas não havia porque perdoar uma raça que destrói as coisas que ama,
o seu próprio mundo e ainda põem a culpa em seres de outro planeta. David a
ensinara a questionar sobre o sentido de cada coisa ao redor para formar uma
opinião sobre as coisas.
Alice não tinha pra onde ir, nem porque continuar em busca de um lugar
seguro. Para ela, só lhe restava esperar. Esperar até o fim. Até o fim de sua
vida, ou do mundo, ou de ambos. E lá ela sentou e esperou, esperou e esperou ao
lado de David. Sempre. E para sempre ela lá ficou ao lado de David. Para
sempre.
Anos depois, um jovem casal passeava por um lindo jardim quando
encontraram algo belo e triste ao mesmo tempo. Dois corpos abraçados.
- Eles pareciam se amar muito. – disse a mulher.
- Como será que eles morreram? – perguntou o homem.
- Acho que não importa como, mas sim que, afinal de contas, eles ficaram
juntos, para sempre.
- Para sempre. – disseram ambos.
Nenhum comentário:
Postar um comentário